11/09/2001
SYDNEY 2000 - ATLETISMO

A força negra

Em artigo exclusivo para ÉPOCA, autor americano aponta a superioridade racial dos velocistas com origem no oeste da África

Um dos atletas favoritos do Brasil nas Olimpíadas, Claudinei Quirino, era frentista de posto de gasolina em 1990 quando um amigo o encorajou a entrar num torneio regional de atletismo. O resto é história. Com um capítulo final a ser escrito em Sydney. Em 1997, Claudinei foi campeão sul-americano. Depois veio a medalha de ouro no Pan-Americano de 1999. Rápido como um raio, ele vai carregar nos ombros o crescente orgulho de um Brasil que vai solidificando sua reputação como potência esportiva. Mas Claudinei é parte de um fenômeno ainda mais notável: o quase total domínio da elite das corridas por atletas de ascendência africana.

Eis uma previsão segura: todos os atletas nas finais masculinas das provas de curta distância na Austrália terão raízes na África. Mais impressionante ainda: atletas negros detêm todos os principais recordes importantes em corridas, embora os brancos sejam competitivos em provas de longa distância, e os asiáticos maratonistas respeitáveis. É coincidência? Terão os negros, apenas um oitavo da população mundial, pendor genético para os esportes? É racista ser curioso, particularmente nos Estados Unidos e no Brasil, caldeirões étnicos em que a própria noção de raça é um problema político? Essas questões são abordadas em meu recente livro Taboo: Why Black Athletes Dominate Sports and Why We’re Afraid to Talk About It (“tabu: por que atletas negros dominam o esporte e por que temos medo de falar disso”). O livro conclui que, nos esportes em que as barreiras econômicas e sociais são as menores – atletismo, futebol americano, basquete, futebol –, a habilidade natural é o mais importante fator de sucesso. E, no conjunto, atletas de ascendência africana são mais habilidosos que os de qualquer outro grupo populacional.

Esse é, compreensivelmente, um assunto espinhoso. A partir da Segunda Guerra, numa reação às teorias extremistas sobre raça que forneceram combustível intelectual ao nazismo, sustentou-se que o conceito de raça baseado principalmente na noção de cor da pele não tem significado. Essa convicção igualitária alimentou o estereótipo de que o sucesso esportivo seria inteiramente cultural – produto de trabalho duro e oportunidade. Para os cientistas contemporâneos, no entanto, essas visões puramente sociológicas são antiquadas e anticientíficas. Segundo pesquisadores de ponta, características genéticas ligadas a estrutura do esqueleto, distribuição dos tipos de fibras musculares, prontidão dos reflexos, eficiência metabólica, capacidade pulmonar e habilidade para usar energia de maneira mais eficiente não são distribuídas de forma igualitária entre a população. E não podem ser explicadas por fatores ambientais. “Diferenças entre atletas de elite são tão pequenas”, ressalta Robert Malina, antropólogo e editor do Journal of Human Biology, “que, se você tem um físico com maior eficiência baseada em fatores genéticos, isso pode ser muito significativo. Uma fração de segundo é a diferença entre a medalha de ouro e o quarto lugar.”

A África é a estufa esportiva do mundo. Atletas africanos têm uma série de características estruturais em comum: baixa taxa de gordura no organismo, pernas mais longas que o resto do corpo e quadris estreitos. Ambientes diferentes, porém, deixaram marcas evolutivas diferentes. Os que têm raízes na África Ocidental, que foi geográfica e geneticamente isolada do norte (pelo árido clima do deserto) e do leste (pela Grande Fossa Africana) são os melhores velocistas do mundo. Não é surpresa que corredores com ascendência africana ocidental – como os brasileiros Quirino, Sanderlei Parrela, dos 400 metros, e Eronildes Araújo, dos 110 metros com barreiras – monopolizem as provas de velocidade. Os negros detêm os 200 melhores tempos nos 100 metros rasos e foram os 32 finalistas nessa modalidade nas últimas quatro Olimpíadas. Dezenas de atletas com origem na África Ocidental já correram os 100 metros rasos, o mais puro teste de velocidade, em menos de 10 segundos. Nenhum branco, asiático ou africano oriental fez o mesmo.

Os estudos mostraram que esportistas com essa origem étnica atingem uma barreira biomecânica depois de 45 segundos de intensa atividade anaeróbica (provas mais longas que 400 metros em corrida e qualquer distância em natação, na qual se acredita que os africanos tenham desvantagens genéticas). A partir daí, aptidões aeróbicas – que envolvem a capacidade de oxigenação do sangue – entram em jogo. Nas distâncias mais longas, corredores do norte e do leste da África – quenianos em particular – fizeram mais de 50% dos melhores tempos.

Apesar da clara dominância de atletas de origem africana, a questão genética não se limita a negros. Brancos de ascendência eurasiana, que têm, em média, maior força na parte superior do corpo, previsivelmente dominam levantamento de peso, luta e arremesso de peso e de martelo (brancos têm 46 das 50 melhores marcas de arremesso). A flexibilidade natural dos orientais, que tendem a ser pequenos e a ter extremidades relativamente curtas, com o dorso longo, lhes dá vantagem em alguns esportes, entre os quais salto ornamental e patinação artística. Uma taxa mais alta de gordura no organismo, que nas provas de velocidade é um empecilho, faz deles excelentes atletas de alta resistência. E o multiétnico Brasil? Estudos indicam que 40% da população é de ascendência exclusivamente européia, com o restante apresentando marcadores genéticos da África e da Ásia em doses significativas. Isso pode ajudar a explicar por que o país produz tanto velocistas de elite quanto maratonistas de categoria internacional, como Ronaldo da Costa.

Esse é, claro, um território perigoso. Mas fingir que não há questões espinhosas não evita que elas sejam formuladas. A dura verdade é que não podemos fugir do confronto com a diversidade humana. Com o avanço do Projeto Genoma Humano, o problema não é mais saber se essas pesquisas vão continuar, mas sim de que maneira e com que finalidade. O padrão nos esportes é uma metáfora para propensões já identificadas de populações específicas para determinadas doenças. Judeus asquenazes são 100 vezes mais vulneráveis que outros à doença de Tay-Sachs (síndrome cerebral que afeta recém-nascidos). Os brancos do norte da Europa têm mais fibrose cística, e a anemia falciforme atinge desproporcionalmente os negros. Por que aceitamos que a evolução tornou essas populações diferentes no que se refere à incidência de moléstias, mas consideramos racista sugerir que negros do oeste da África evoluíram até ser os melhores velocistas e brancos os melhores atiradores de martelo? ”Acho que devemos olhar para as causas das diferenças no desempenho atlético entre as raças como fazemos quando estudamos doenças”, afirma Claude Bouchard, da Universidade Laval, no Canadá. “Pesquisa é a maior garantia contra preconceitos”, conclui. Seres humanos são diferentes. Se não acolhermos a incipiente revolução genética com mente aberta, se tivermos medo de responder a perguntas difíceis, se perdermos a fé na ciência, não haverá vencedores. O desafio é conduzir a pesquisa de modo que a diversidade humana seja motivo de alegria por nossa individualidade e não causa de desconfiança quanto a nossas diferenças.




Os 100 metros
Os velocistas, todos negros, que já baixaram a barreira dos 10 segundos na prova mais clássica do atletismo

 
Número de vezes
Melhor marca
Frank Fredericks (Namíbia)
26
9s86
Maurice Greene (EUA)
25
9s79
Ato Boldon (Trinidad e Tobago)
22
9s86
Donovan Bailey (Canadá)
16
9s84
Carl Lewis (EUA)
15
9s86
Dennis Mitchell (EUA)
12
9s91
Bruny Surin (Canadá)
10
9s84
Linford Christie (Reino Unido)
10
9s87


*Jon Entine é autor do livro Taboo: Why Black Athletes Dominate Sports and Why We’re Afraid to Talk About It